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Os estudiosos da ciências humanas coincidem no mesmo
diagnóstico atual da sociedade: um paciente que passa por uma crise de
sentido e que reflete, em parte, o mal do homem moderno, a depressão. O
discurso da modernidade esclarecida representou um longo salto para a
promoção da ciência e da tecnologia. Contudo, foi incapaz de
proporcionar um crescimento profundo do ser humano como pessoa.
Uma das razões desta crise estrutural está na
polarização que a modernidade criou entre indivíduo e Estado.
Certamente, a vida humana é marcada por uma tensão dialética entre sua
dimensão pessoal e sua dimensão social, mas tensão não significa
necessariamente alienação ou mesmo oposição.
Supõe uma harmonia íntima reforçada mutuamente,
pois somente por meio da relação com os outros, a reciprocidade e o
exercício do diálogo com nossos semelhantes a pessoa desenvolve todas as
suas potencialidades e pode responder à sua vocação natural.
Com efeito, um novo paradigma social deve evitar
as patologias de um individualismo institucionalizado, que tende a
reduzir a pessoa nas dimensões econômica e política. Resulta urgente,
logo, promover iniciativas que fortaleçam o tecido social e impeçam o
império da mercantilização das interações sociais ou mesmo de uma vazia
politização social.
Por ocasião da comemoração do centenário da encíclica Rerum novarum,
João Paulo II lembrou-nos de que "o indivíduo é hoje muitas vezes
sufocado entre os dois pólos do Estado e do mercado. De fato, às vezes
parece que ele existe apenas como produtor e consumidor de mercadorias
ou como objeto da administração do Estado, esquecendo que a
coexistência dos homens não tem como fim nem o mercado nem o Estado, já
que a pessoa tem em sim mesma um valor singular, a cujo serviço devem
estar o Estado e o mercado (in Enc. Centesimus Annus,1991, n. 49)”.
O banimento das esferas de sentido humano, fruto
próprio da extremada racionalização da vida contemporânea, aumenta a
entropia do sistema social, cuja legitimidade vai sendo constantemente
questionada, em razão do esfacelamento do consenso social (con-senso:
sentir com os outros) nas áreas vitais. Como reação, estes âmbitos
tendem a dobrar sobre si mesmos e a autorreferencialidade dos sistemas
passa a refletir a autorreferencialidade dos indivíduos.
Daí a oportunidade de assegurar contínuos e
flexíveis intercâmbios entre “o sistema (politico e econômico) e o mundo
da vida”, na linguagem de Habermas. O desengate havido entre ambas
esferas criou uma falsa contraposição entre a tese pública do bem comum
e a antítese privada do bem pessoal que, na prática, resulta numa
confusa síntese entre conformidade estática e alienação hedonista.
Creio que o “reacoplamento” das duas esferas
poderia ser feito pela adoção da esfera social como espaço para uma
gestão livre e solidária, fruto da criatividade das organizações
intermediárias autônomas e com reconhecimento público pela burocracia
estatal. Logo, o sistema pode e deve favorecer na prática tais grupos
sociais, pois estão em condições de alcançar metas que transcendem os
interesses setoriais e de desenvolver objetivos comunitários de
envergadura universal.
Por meio destes canais sócio-culturais, o sistema
passaria a ser um grande delta que, alimentado pelo leito das águas
sociais, acumularia os ricos sedimentos das ações do mundo da vida, que
sempre estimulam uma maior abertura dos indivíduos para a vida social. O
núcleo dessas iniciativas repousa sobre o conceito clássico de amizade
social e sua importância reside na atenção dada aos dados
pré-políticos e pré-econômicos da vida cotidiana, ajudando no resgate
das fibras do esfacelado tecido social.
Além das agências de solidariedade secundárias, mais importante ainda são os grupos de solidariedade primários, onde a família, notória vítima das ideologias modernas, tem o principal destaque: é fonte radical de sociabilidade e de mediação humana cheia de sentido. É necessário, assim, sublinhar a “subjetividade” da família.
Além das agências de solidariedade secundárias, mais importante ainda são os grupos de solidariedade primários, onde a família, notória vítima das ideologias modernas, tem o principal destaque: é fonte radical de sociabilidade e de mediação humana cheia de sentido. É necessário, assim, sublinhar a “subjetividade” da família.
A pessoa é um sujeito e assim também é a família,
por estar constituída por pessoas que, unidas por um laço profundo de
comunhão, formam um único sujeito comunitário. Além disso, a família
precede outras instituições, como a própria sociedade e mesmo uma
nação, os quais gozam de uma subjetividade peculiar na medida em que a
recebem das pessoas e de suas famílias. Com respeito à divergência, é o
que penso.